Ainda que não se configure como um país mas sim uma extensão dos Estados Unidos, Porto Rico sozinho possui uma vasta identidade cultural, a começar pela língua oficial herança dos seus colonizadores, o espanhol. Em face de algumas peculiaridades quando comparado ao resto dos Estados Unidos, decidi tratar Porto Rico como se fosse um país, ainda que ele não seja, mas só para que o território fosse englobado nos objetivos do meu projeto Nas Entrelinhas do Mundo, que consiste em ler um livro de cada país. Sendo assim, pedi a uma amiga, a Nicol Solís, formada em Cinema pela Universidade de Porto Rico em San Juan, que me recomendasse um livro porto riquenho que ela considerasse leitura obrigatória e eis que sua indicação foi "Mundo Cruel" do Luis Negrón.
Publicado inicialmente em 2010 pela editora La Secta de los Perros e depois por outras diferentes editoras porto riquenhas, "Mundo Cruel" do Luis Negrón é ao mesmo tempo divertido e devastador. Em 2012, o livro foi adaptado para o teatro sob a direção da atriz Jacqueline Duprey. No ano seguinte, "Mundo Cruel" ganhou uma tradução para o inglês pela editora Seven Stories Press, tradução que concedeu ao livro o Prêmio Literário Lambda de 2014 na categoria de ficção, prêmio dado a trabalhos que celebram ou exploram temas LGBT. "Mundo Cruel" também foi nomeado entre os dez melhores livros de 2010 pelo jornal porto riquenho El Nuevo Día, fazendo com que a história se tornasse ponto de partida de discussões envolvendo gênero e diversidade em diferentes universidades nos Estados Unidos.
A obra é uma coleção de nove contos sobre a realidade gay, trans e bissexual em Santurce, um bairro porto riquenho que se caracteriza como uma área marginalizada de San Juan. De acordo com o autor, a ideia para o livro surgiu após uma breve visita a um evento literário dedicado ao público gay. Negrón notou que o foco das histórias eram sempre os gays mainstream, de certa forma mais facilmente aceitos pela sociedade, enquanto que os afeminados ou "loquitas", como são pejorativamente apelidados em Porto Rico, estavam sendo deixados de fora, sendo que geralmente são esses os que mais sofrem discriminação, inclusive dentro da própria comunidade gay. Em "Mundo Cruel", Luís Negrón rompe com esse padrão. Utilizando-se de sarcasmo e humor, o autor relata a pobreza, violência urbana e os abusos sofridos pela comunidade LGBT em Santurce - ou qualquer outro canto do mundo, se você me perguntar.
"Quando eu entrei, ouvi um barulho, e quando me aproximei do mictório vi o filho da irmã Paca comendo o filho do irmão Pabón. Naquele momento eu tive a minha primeira revelação verdadeira. Todo o meu corpo estava me dizendo que eu queria estar no lugar onde o filho do irmão Pabón estava. [...] A notícia chegou até o papai pelos meus irmãos, que estavam ansiosos pelo espancamento que se seguiria. [...] Papai segurou o meu rosto com uma mão e esmagou-o na outra mão como se meu rosto fosse uma bola de papel. Ele tirou o cinto e surrou minhas costas. Quando ele viu que eu não estava chorando, que eu não fazia um pio, ele bateu no meu rosto com a fivela do cinto até que o pequeno coral que cantava no rádio se silenciasse. Ele deixou os meus dois olhos inchados e meu nariz quebrado. Depois que o inchaço passou o meu rosto ficou transformado. [...] Para os outros garotos eu parecia irresistível. Todos eles queriam ser meus namorados."
De forma crua, que durante a leitura me fazia lembrar de "A Casa dos Budas Ditosos" do João Ubaldo Ribeiro, Luis Negrón apresenta um mundo trágico e escandaloso em suas nove pequenas histórias. O parágrafo acima, calmo em relação a tempestade que é o resto da obra, pode chocar leitores pouco acostumados a esse estilo satírico e vulgar bastante encontrado, por exemplo, na trilogia obscena da Hilda Hilst, mas ele é a identidade dos próprios personagens do livro, que sem nomes são trazidos à vida a partir dos seus próprios discursos coloquiais e às vezes auto-incriminadores. A linguagem é um ponto importante da obra, pois as histórias são contadas de acordo com o protagonista e da sua forma de conjurar a palavra falada, sem as regras gramaticais atreladas a mesma.
As histórias decompõem a cena gay em risos, dramas, caos, histeria e, acima de tudo, uma busca desesperada por amor, amor que é o medo da maioria, especificamente a ausência deste, que escasseia com a idade, que se atenua com a presença de um vírus ou que se acaba com uma ida do namorado ao banheiro da balada. As diferentes histórias focam em diferentes estigmas que circundam a vida da comunidade LGBT, sejam esses aspectos internos ou externos, tais como a hipocrisia, o medo de sair do armário, o culto ao macho em detrimento aos mais afeminados, a rivalidade interna na comunidade gay, entre outros aspectos que o autor faz questão de tirar o band-aid de cima para enfiar a ponta do lápis. Ainda que seja uma divertida leitura, o livro também é difícil de se digerir, o que pode fazer com que algumas pessoas o abandonem facilmente.
A minha maior dificuldade em relação ao livro foi tentar encontrar uma versão em espanhol que eu pudesse ler, pois sempre fico com receio de que pontos importantes se percam em traduções. Depois de enviar e-mails para algumas editoras, percebi que todos os caminhos me levavam até a versão publicada pela Seven Stories Press. Assim sendo, comprei o e-book em inglês e o li no mesmo dia, mas sempre pensando que na primeira chance que eu tiver eu releio o livro em espanhol. Não encontrei muito sobre o autor porto riquenho no Brasil, não encontrei nada para ser sincero, o que me leva a crer que a sua obra não chegará tão cedo na nossa terra tupiniquim, justo aqui, onde a obra se faz tão verossímil, onde a sociedade ainda é tão homofóbica, onde seres humanos sobrevivem e riem da discriminação e crueldade que com frequência os golpeiam.
Olá, Elder!
ResponderExcluirEu ainda não li nem esse, nem nenhum livro do gênero, mas estou desejando muito, principalmente agora que estou por dentro do que se trata o livro!
Abraços
Book Effect ✎
Já li livros LGBT como os do David Levithan, com aquele toque de literatura YA, mas ainda não li um tão profundo quanto esse parece ser. Espero dar uma chance a ele um dia...
ResponderExcluirAbraços, Miguel do Demasiadamente Lendo
Olá!
ResponderExcluirNossa eu nunca tinha ouvido falar do livro até essa resenha.
Como eu queria saber ler em inglês tbm rsrs
Espero que seja publicado logo aqui para ler esse obra
http://malucaspor-romances.blogspot.com.br/
Olá, tudo bem??
ResponderExcluirNunca li e nem conhecia o livro... Imagino que deve ser bem difícil de encontrá-lo pelo trabalho todo que você teve. Gostei do enredo, quando tiver uma oportunidade de ler, com certeza irei aproveitar!
XOXO
umnovo-roteiro.blogspot.com
Ola, sou brasileira e estou fazendo intercambio de psicologia aqui em Puerto Rico. Li esse livro para um trabalho final da cadeira de Psicologia Social. Primeiramente, agradeco tua resenha, concordo com muito com o que dizes. E sim, estas perdendo muito ao ler em ingles, pois em espanhol ha muitas expressoes daqui que nao ha traducoes.
ResponderExcluirOlá! Que surpresa agradável me deparar com o teu comentário aqui! Então, parece-me que a minha amiga que sugeriu Mundo Cruel pra mim também o leu como parte de alguma disciplina na universidade, o que só reforça o fato de o livro trazer à tona discussões atuais que precisam ser debatidas.
ExcluirEu tive um momento mega especial essa semana passada, pois o autor do livro, sim o próprio Luis Negrón, entrou em contato comigo via Facebook e batemos um papo super legal sobre o livro dele e outras coisas mais. No final, ele ficou de me enviar uma edição em espanhol, a recém lançada na Argentina, então em breve estarei relendo em espanhol e me jogando por completo na obra.
Um abraço!