A fábula Holy Cow é infantil, embora a obra do escritor norte-americano possa assumir diferentes releituras, tanto infantis quanto adultas, o que torna a sua leitura agradável para todas as idades. A história não possui, evidentemente, muita densidade, mas não é a isso que a história se propõe. Na verdade, a história de Elsie Bovary, uma vaca muito feliz em sua bovinidade, é divertida e relaxante. No seu modo inocente e compassado, a história desperta pequenos questionamentos no leitor sobre os direitos dos animais, práticas pecuaristas que degradam o meio ambiente e o entendimento de que somos todos um só.
Elsie Bovary é uma vaca feliz, que vive em paz com o seu destino bovino e em harmonia com o ciclo que se repete na vida das vacas: as mamães e papais misteriosamente desaparecem depois que os filhotes se tornam capazes de também serem mamães e papais. Até que uma noite Elsie se vê atraída por um barulho na casa da fazenda e, através da janela, observa a família reunida em volta da TV. A televisão, para o seu espanto, revela o real destino das vacas e gados: o açougue, o churrasco, o hambúrguer, etc. A realidade a perturba e a aterroriza, o que a faz começar um diálogo interno sobre a dualidade humana que com a mão direita mata vacas, galinhas e porcos e com a esquerda afaga os cachorros e brinca com os gatos.
Nesse momento da história, pensei ter compreendido a "lição" da fábula de David Duchovny e ter acertado a bandeira que ele iria defender: a do veganismo. Mas errei feio e, melhor do que tomar posições e fazer julgamentos desnecessários, o autor levanta questionamentos e faz convites à reflexão, deixando para o leitor a tarefa de decidir o que é certo ou errado. O meu outro erro durante a leitura foi ter tentado "compreender a lição" quando eu ainda não tinha lido nem a metade do livro e, mais uma vez, fui surpreendido: Elsie, depois da experiência traumática, decide ir embora para a Índia, onde ela descobriu que as vacas são tratadas como deusas.
No ritmo dos planos de fuga, Elsie acaba se unindo a Tom, um peru tranquilão que nas vésperas do feriado de Ação de Graças começa uma rígida dieta para emagrecer e não ser escolhido para o abate, e Shalom, um porco recém convertido ao judaísmo que vê Israel como o destino ideal para os porcos, visto que carne suína não é assim tão apreciada por essas bandas de lá. Na aventura animal, o leitor é bombardeado de tiradas envolvendo a condição animal e as expressões do mundo humano, como "nem que a vaca tussa", etc. Não cheguei a gargalhar, mas inúmeras vezes lancei sorrisos faceiros de "ei, eu vi o que você fez aqui, David".
Ao construir uma fábula animal repleta de indiretas aos leitores, nós humanos, David Duchovny cria uma história que pode trazer um certo incômodo, o que, na narrativa, a própria Elsie percebe, mas como ela mesmo diz, "às vezes é preciso abrir o coração e soltar o verbo". É através do verbo solto de Elsie que a reflexão se materializa e a história faz sentido, pois não importa se um adulto ou criança entram em contato com a narrativa, ambos são forçados a se questionar. Por trazer questionamentos tão adultos em um livro para crianças, Holy Cow já se sustenta como muito além de "mais um livro de algum famoso", mas sim como um livro ponto de partida para discussões interessantes sobre relações sociais e direitos dos animais.
Título original: Holy Cow - A Modern-Day Dairy Tale
Autor: David Duchovny
Ano: 2015
Páginas: 208
País: Estados Unidos
Editora: Record
To louco p ler e desde então só me deparo com resenhas positivas a obra, a sua foi de longe a mais esclarecedora, pontuando os detalhes por trás da história o que me deixou com mais vontade.
ResponderExcluirAbs
Olá, Elder, ótima resenha.
ResponderExcluirEu também achei que a "lição" da fábula Holy cow seria defender o veganismo, mas na minha leitura percebi que, muito mais do que isso, é uma crítica contra o consumismo desenfreado. Percebi isso naquela cena em que Elsie encontra vários restos de comida numa lata de lixo. Claro que o autor defende um pouco a comunidade veggie, mas ele não fez um livro tentando converter as pessoas ao veganismo, mas sim, uma espécie de alerta a certos comportamentos extremamente consumistas.
Beijinhos, Hel - Leituras & Gatices