No início do ano, durante minhas estranhas didáticas com dicionários para me forçar a aprender mais palavras em inglês, deparei-me com o seguinte termo: gaslighting. Em resumo, gaslighting é uma das formas mais extremas, perigosas e eficazes de abuso emocional e psicológico utilizado por narcisistas e sociopatas como uma forma de controlar, confundir e debilitar alguém. O termo advém de uma peça de 1938, Gas Light, na qual um homem faz com que a sua mulher duvide de sua própria sanidade através do uso de manipulação psicológica. No momento em que comecei a ler O papel de parede amarelo, o termo gaslighting piscou diante dos meus olhos e se tornou recorrente durante toda a leitura, ainda que em nenhum momento a palavra tenha sido mencionada na história.
Em 1891, a norte-americana Charlotte Gilman publicou o conto O papel de parede amarelo na New England Magazine. No conto, Gilman narra a história de uma mulher enclausurada por seu marido, médico, sob o pretexto de estar com "uma leve tendência histérica" e com necessidade de ser tratada. No seu enclausuramento, a mulher entra em um estado de insanidade provocada por sua condição e por um papel de parede amarelo muito peculiar presente no quarto. O papel de parede, durante a narrativa, é utilizado constantemente para estabelecer metáforas sobre a posição da mulher na pirâmide social da época. A abordagem de temas envolvendo gaslighting e o papel restrito da mulher na sociedade fez com que O papel de parede amarelo se transformasse em um clássico da literatura feminista.
É interessante, porém, antes de comentar a história, entrar na vida da própria autora.
Em 1885, Charlotte casou-se com o artista Charles Stetson, tendo inicialmente negado o seu pedido de casamento com receio de não estar fazendo a coisa certa, mas depois cedendo. Contudo, o seu temor quanto a escolha entre a carreira e a família em conjunto com a coerção social que ditava as regras da vida feminina logo a levaram a uma depressão. Charlotte passou a se questionar sobre o papel que lhe tinha sido atribuído dentro do casamento e começou a sentir que algo, no meio de todo esse padrão imposto, não estava correto. No momento em que se sentiu aprisionada pelas amarras da convenção social, onde a mulher "deveria" escolher a família ao invés da carreira, Charlotte se separou, vindo alguns anos depois a escrever, entre outro textos feministas, O papel de parede amarelo.
Em O papel de parede amarelo, o leitor é convidado a conhecer a história através do diário de sua narradora que, isolada em um quarto infantil com um estranho papel de parede, encontra na escrita um modo de relatar os estranhos acontecimentos que tem presenciado, ainda que o marido não goste que ela escreva. No seu texto de parágrafos curtos e sentenças precisas, a narradora costura um clima tenso, onde ela conta ver barras no papel de parede amarelo que exibem uma mulher presa tentando se libertar. No auge de sua loucura, a narradora passa a ver várias mulheres atrás das barras padronizadas do papel amarelo, todas tentando se libertar. No que tange ao marido, ao saber de seus devaneios, resume a narradora a uma "tolinha", sempre a fazendo vestir a máscara da "mulher doida".
No final do ano passado, iniciei um trabalho voluntário como professor de inglês e produtor multimídia em uma ONG no interior do estado do Pará, a Associação de Mulheres da Área Pesqueira de Marudá. Com base nas dinâmicas, conversas e confissões que algumas mulheres me fizeram enquanto eu as fotografava ou as acompanhava durante as atividades da associação, afirmo que a obra de Charlotte, escrita há mais de cem anos atrás, ainda se faz tão atual, pois as barreiras, ainda que algumas acreditem que não, continuam impedindo que as mulheres se libertem por completo das amarras que a sociedade patriarcal lhes impõe. Amarras que as condenam por seus desejos, anseios e direitos e que, vez ou outra, as fazem acreditar que são insanas. Se me dissessem que O papel de parede amarelo foi escrito na semana passada, infelizmente e sem muito esforço eu acreditaria.
É interessante, porém, antes de comentar a história, entrar na vida da própria autora.
Em 1885, Charlotte casou-se com o artista Charles Stetson, tendo inicialmente negado o seu pedido de casamento com receio de não estar fazendo a coisa certa, mas depois cedendo. Contudo, o seu temor quanto a escolha entre a carreira e a família em conjunto com a coerção social que ditava as regras da vida feminina logo a levaram a uma depressão. Charlotte passou a se questionar sobre o papel que lhe tinha sido atribuído dentro do casamento e começou a sentir que algo, no meio de todo esse padrão imposto, não estava correto. No momento em que se sentiu aprisionada pelas amarras da convenção social, onde a mulher "deveria" escolher a família ao invés da carreira, Charlotte se separou, vindo alguns anos depois a escrever, entre outro textos feministas, O papel de parede amarelo.
Em O papel de parede amarelo, o leitor é convidado a conhecer a história através do diário de sua narradora que, isolada em um quarto infantil com um estranho papel de parede, encontra na escrita um modo de relatar os estranhos acontecimentos que tem presenciado, ainda que o marido não goste que ela escreva. No seu texto de parágrafos curtos e sentenças precisas, a narradora costura um clima tenso, onde ela conta ver barras no papel de parede amarelo que exibem uma mulher presa tentando se libertar. No auge de sua loucura, a narradora passa a ver várias mulheres atrás das barras padronizadas do papel amarelo, todas tentando se libertar. No que tange ao marido, ao saber de seus devaneios, resume a narradora a uma "tolinha", sempre a fazendo vestir a máscara da "mulher doida".
"Depois de tanta observação durante a noite, quando ele muda tanto, afinal descobri. O desenho da frente se mexe mesmo - é lógico! A mulher por trás dele o sacode! Às vezes penso que há muitas mulheres atrás, e às vezes apenas uma, e ela rasteja em volta bem depressa, e o movimento que faz rastejando sacode tudo. Então, nos locais bem claros ela fica parada, e nos pontos mais escuros ela se agarra nas barras e as sacode com força. E o tempo todo ela está tentando saltar para fora das grades. Mas ninguém conseguiria escapar daquele padrão de desenho – ele estrangula tanto."Na metáfora que o papel de parede faz com as inúmeras mulheres aprisionadas atrás das barras de uma sociedade patriarcal, é possível fazer uma relação com a própria história de Charlotte que, embora tenha em partes se libertado dessas barras, passou anos de sua vida encarcerada pelo padrão que a impedia de escolher tanto ser dona de casa quanto correr atrás de sua carreira - se assumir esses dois papéis fosse o seu anseio. O papel de parede amarelo, por diversas vezes, deve ter sido interpretado como um mero conto de terror ou loucura, dada a sútil porém corajosa metáfora utilizada por Charlotte para descrever uma sociedade patriarcal que aprisionava e ainda aprisiona mulheres em casamento convencionais. Como diz Marcia Tiburi na apresentação da obra: "Ora, toda mulher conhece o papel de parede amarelo e seu bizarro padrão."
No final do ano passado, iniciei um trabalho voluntário como professor de inglês e produtor multimídia em uma ONG no interior do estado do Pará, a Associação de Mulheres da Área Pesqueira de Marudá. Com base nas dinâmicas, conversas e confissões que algumas mulheres me fizeram enquanto eu as fotografava ou as acompanhava durante as atividades da associação, afirmo que a obra de Charlotte, escrita há mais de cem anos atrás, ainda se faz tão atual, pois as barreiras, ainda que algumas acreditem que não, continuam impedindo que as mulheres se libertem por completo das amarras que a sociedade patriarcal lhes impõe. Amarras que as condenam por seus desejos, anseios e direitos e que, vez ou outra, as fazem acreditar que são insanas. Se me dissessem que O papel de parede amarelo foi escrito na semana passada, infelizmente e sem muito esforço eu acreditaria.
Título original: The Yellow Wallpaper
Autora: Charlotte Perkins Gilman
Ano: 2016
Ano da primeira publicação: 1892
Páginas: 112
Editora: José Olympio
Olá, essa é a primeira vez que venho aqui no seu blog, por indicação de uma amiga, e gostei muito da tua escrita.
ResponderExcluirEsse conto é sensacional, não é mesmo?! A metáfora, o papel de parede amarelo, erroneamente interpretada como um elemento de terror pela crítica, foi genial. Me surpreendi muito lendo esse conto com a astúcia da autora e como ela coloca um pouco de si na narrativa. O texto todo está maravilhoso, inclusive o texto de apoio escrito por Marcia Tiburi, que faz essa analogia entre a protagonista do conto e a própria autora.
E tua resenha está divina, consegui ver todos os momentos do conto ao lê-la.
Voltarei com mais frequência :D
Beijinhos, Hel - Leituras & Gatices
Olá Elder! Esse livro parece ser bastante interessante e com um tema bastante importante em nossa sociedade atual, como você mesmo afirma em suas conclusões "O papel de parede amarelo foi escrito na semana passada, infelizmente e sem muito esforço eu acreditaria" infelizmente ainda a muito progresso a ser feito em relação a isso. Adorei sua resenha!
ResponderExcluirps: não sei se você lembra do meu blog, era o "strawberry de livros e filmes" mas agora o nome mudou para "pitada de cinema e leitura" e eu voltei com novidades nesse novo blog! Conto com a sua visita! E espero que goste! :)
Jéssica Patrício - pitadadecinemaeleitura.blogspot.com
Olá, Elder!
ResponderExcluirTudo nesse livro chamou minha atenção, desde a capa até o nome. Lendo sua resenha, vejo que vale muito a pena ler essa estória. Parece ser muito intrigante e que nos faz refletir. Adorei sua resenha!
Beijos, Garota Vermelha
www.livrosdagarotavermelha.wordpress.com
É meio assustador como algumas coisas que julgamos arcaicas persistem vivas e adaptadas à atualidade. Enquanto alguns de nós se referem a elas como "em tal época era assim e assado" a maioria ainda tem de lidar com essas antigas amarras.
ResponderExcluirO gaslighting é bem do cotidiano feminino, e eu digo isso porque vejo-o sendo usado na minha própria casa e por relatos de mulheres pela internet afora.
Não conhecia O Papel de Parede Amarelo, mas com certeza está na lista de leituras necessárias.
Ótima resenha.
Abraço.