No dia em que rompi com o materialismo para começar a sublinhar, riscar e marcar as páginas dos meus livros, inconscientemente abri um caminho para a releitura, pois a cada saudade de uma Hilda ou uma vontade de Clarice, eu poderia reabrir os livros já lidos nas páginas selecionadas e reler os trechos que deixaram marcas em mim. No vai e vem de releituras de trechos, um encontro no desencontro dos personagens se estabelecia, mas um encontro tão breve que poderia até ser confundido com uma despedida. É como molhar os pés na areia úmida da praia segundos antes de a areia secar. Não é o bastante para se molhar, mas o suficiente para sentir o quanto a água está fria.
Mas se o toque na areia úmida é reler trechos aleatórios, o despir-se e o lançar-se nas ondas do mar equivalem a uma releitura por inteiro de uma obra. E, como que necessitado desse banho catártico, entrei no oceano outra vez ao decidi reler Morangos Mofados (1982) do Caio Fernando Abreu. E quase tinha esquecido que o salgado dessas águas caiofernandianas não surgem do oceano, mas das lágrimas que são consequências do sabor da derrota. Como o próprio Caio indica no início de Os dragões não conhecem o paraíso (1988), os seus contos giram em torno de “amor e sexo, amor e morte, amor e abandono, amor e alegria, amor e memória, amor e medo, amor e loucura” e, em Morangos Mofados, esses elementos se personificam como uma dramática biografia da sua geração.
No meu primeiro contato com Morangos Mofados, a minha leitura estava totalmente respaldada no eu e em como os meus sentimentos batiam no texto e eram refletidos de volta para mim. Tolice egocêntrica e a necessidade juvenil de estar no centro do universo explicam essa primeira abordagem. Não que a experiência tivesse sido menos prazerosa, mas tentar encontrar o meu próprio EU nos textos do Caio me impediu de encontrar o próprio CAIO no meio dos seus próprios textos. É por isso que quase seis anos depois da primeira leitura, aventurei-me outra vez em Morangos Mofados, mas com o intuito de compreender o mofo, os morangos e a crise da contracultura vivida por Caio F. Abreu, crise que transforma o texto em uma exteriorização da derrota sofrida contra o sistema.
A romantização do "American Way of Life". |
Nas terras tupiniquins, a contracultura acaba coincidindo com um dos períodos mais obscuros da política nacional: a ditadura militar instaurada no golpe civil-militar de 64. A repressão à liberdade de expressão imposta pela ditadura foi sentida na pele por Caio, que perseguido e fichado pelo Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) em 1968, refugiou-se no interior de São Paulo no sítio da escritora Hilda Hilst. A repressão fechava os sinais, impedia o caminho dos que sonhavam e deixava um estranho amargo na boca. Em carta enviada à Hilda e publicada em 2002 em um livro de cartas organizado por Italo Moriconi, Caio menciona:
"As coisas realmente não andam boas. Parece que quando tudo começa a degringolar não há o que segure. Primeiro no plano político: a portaria do ministério sobre censura de livros me deixou besta. Não pensei que chegássemos a tanto, é a degradação completa, o medievalismo e a inquisição reinstaurados. A seguir, a perseguição dos hippies, como se fossem criminosos ou cães hidrófobos. Cada dia, quando abro o jornal, tenho um novo choque e uma revolta que se acumula e, logo após, uma terrível sensação de inutilidade."
Na canção "Strawberry fields forever" dos Beatles, que aparece no último conto de Morangos Mofados, Lennon fala de campos de morangos infinitos onde nada é real e não há estresse. Mas a utopia criada na música de Lennon não dura muito nas mãos do Caio, pois sua geração assiste essa muito sonhada e pouco vivida utopia ser castigada e tomada pelo mofo. É nessa linha que Morangos Mofados se estrutura em três partes: O mofo, que marca o fim das utopias e é constituído de 9 contos; Os morangos, com 8 contos que falam da urgência de um recomeço e das sementes que florescem em desertos de almas também desertas; e Morangos mofados, que dá título ao livro e onde são encontrados os fiapos de esperança no meio das desilusões utópicas.
Em O Mofo, a escrita do autor assume um ar de derrota e um sentimento de melancolia angustiante. O narrador do conto Os Sobreviventes, por exemplo, fala das aspirações e utopias juvenis que foram substituídas pela rotina de oito horas diárias de trabalho necessárias para pagar poltronas de couro autêntico. A geração que conseguiu sobreviver à derrota das utopias agora se vê estagnada ou, como o Caio escreveu para a Hilda, com uma terrível sensação de inutilidade.
"Quanto a mim, a voz tão rouca, fico por aqui mesmo comparecendo a atos públicos, pichando muros contra usinas nucleares, em plena ressaca, um dia de monja, um dia de puta, um dia de Joplin, um dia de Teresa de Calcutá, um dia de merda enquanto seguro aquele maldito emprego de oito horas diárias para poder pagar essa poltrona de couro autêntico onde neste exato momento vossa reverendíssima assenta sua preciosa bunda e essa exótica mesinha de centro em junco indiano que apoia nossos fatigados pés descalços ao fim de mais outra semana de batalhas inúteis, fantasias escapistas, maus orgasmos e crediários atrasados." (Pg. 29-30)
Na busca por respostas, por alguém ou por amor, essa primeira parte da obra também representa a necessidade de um outro que nos aceite como somos sem que tenhamos o receio de nos mostrarmos por inteiros. O conto Além do ponto é o primeiro da obra onde o narrador deixa o cenário de um apartamento monótono e fechado para encontrar a dureza do mundo exterior, na chuva e no frio da noite. Do lado de fora, o narrador também encontra a necessidade de esconder do amante ou amigo quem realmente é, com medo de que o outro desvendasse seu verdadeiro eu incerto. Em tempos de repressão, viver de aparências poderia ser mais seguro do que viver de autenticidade.
"Não queria que ele pensasse que eu andava bebendo, e eu andava, todo dia um bom pretexto, e fui pensando também que ele ia pensar que eu andava sem dinheiro, chegando a pé naquela chuva toda, e eu andava, estômago dolorido de fome, e eu não queria que ele pensasse que eu andava insone, e eu andava, roxas olheiras, teria que ter cuidado com o lábio inferior ao sorrir, se sorrisse, e quase certamente sim, quando o encontrasse, para que não visse o dente quebrado e pensasse que eu andava relaxando, sem ir ao dentista, e eu andava, e tudo que eu andava fazendo e sendo eu não queria que ele visse nem soubesse, mas depois de pensar isso me deu um desgosto porque fui percebendo, por dentro da chuva, que talvez eu não quisesse que ele soubesse que eu era eu, e eu era." (Pg. 58)O homoerotismo também se faz presente em Morangos Mofados. No conto Terça-Feira gorda, dois homens iniciam um encontro sexual intenso no meio das celebrações carnavalescas, mas o encontro culmina em "mil pedaços sangrentos", que são o resultado da agressão motivada pelo ódio dos que observavam o envolvimentos dos dois. Nesse ponto da obra, a impressão que fica é a de que não há caminho seguro para os campos de morangos infinitos descritos por Lennon, sendo que toda liberação é recebida com opressão.
"Você é gostoso, ele disse. E não parecia bicha nem nada: apenas um corpo que por acaso era de homem gostando de outro corpo, o meu, que por acaso era de homem também. Eu estendi a mão aberta, passei no rosto dele, falei qualquer coisa. O quê, perguntou. Você é gostoso, eu disse. Eu era apenas um corpo que por acaso era de homem gostando de outro corpo, o dele, que por acaso era de homem também." (Pg. 74)
No último conto da primeira parte do livro, intitulado Luz e sombra, a repressão leva o narrador ao encarceramento - físico e mental -, onde o narrador grita por socorro com a certeza de que ninguém ouvirá sua voz, seja porque não se importam ou porque sua voz não consegue atravessar as barreiras que lhe são impostas. No contexto da ditadura, esse é o conto que mais me remonta ao que seriam memórias da repressão experienciada no autoritarismo militar, repressão que, além de nos tirar a humanidade, também é capaz de nos privar da nossa capacidade de sentir.
"Não choro mais. Na verdade, nem sequer entendo porque digo mais, se não estou certo se alguma vez chorei. Acho que sim, um dia. Quando havia dor. Agora só resta uma coisa seca. Dentro, fora." (Pg. 97)
Na segunda parte da obra, Os morangos, o leitor é enfim presenteado com uma espécie de esperança e de encontro em si mesmo e no próximo, encontro que é explícito no primeiro texto dessa segunda parte: Transformações. Na minha cabeça, gosto de ver Transformações como uma continuação de Além do ponto, pois ambos os narradores caminham na rua, mas enquanto que em Além do ponto o narrador caminha por dentro da chuva preocupado em deixar-se mostrar como realmente é e invisibilizando seu verdadeiro eu, em Transformações o narrador finalmente deixa de ser invisível quando é notado por um outro alguém que o percebe pelo que realmente é e não pela imagem-coisa que criamos a partir de nós para os outros.
"Ele olhou para o lado. Ao lado havia Outra Pessoa. A Outra Pessoa olhava-o com cuidadosos olhos castanhos. Os cuidadosos olhos castanhos eram mornos, levemente preocupados, um pouco expectantes. As transformações tinham se tornado tão aceleradas que, no primeiro momento, não soube dizer se a Outra Pessoa via a ele ou a Ela, se se dirigia à moldura, à casca, ao cristal ou ao desenho, ao corpo original, às gotas de sangue. Isso num primeiro momento. Num segundo, teve certeza absoluta que se tinha desinvisibilizado. A Outra Pessoa olhava para uma coisa que não era uma coisa, era ele mesmo. Ele mesmo olhava para uma coisa que não era uma coisa, era Outra Pessoa. O coração dele batia e batia, cheio de sangue. Pousada sobre seu ombro, a mão da Outra Pessoa tinha veias cheias de sangue, latejando suaves. Alguma coisa explodiu, partida em cacos. A partir de então, tudo ficou ainda mais complicado. E mais real." (Pg. 108)
Os dois contos mais conhecidos de Morangos Mofados estão nessa segunda parte do livro, Sargento Garcia e Aqueles dois, ambos dentro da temática homoerótica. Sargento Garcia fala do encontro entre Hermes, jovem estudante prestes a se alistar no exército, e o rígido Sargento Garcia, que no meio de sua rigidez se sente sexualmente atraído pela suavidade de Hermes. O envolvimento entre os dois, como o encontro em Transformações, é catártico para Hermes, que desperta um lado seu que nunca mais voltará a dormir. Poeticamente erótico, o conto Sargento Garcia foi adaptado para um curta-metragem dirigido por Tutti Gregianin e pode ser conferido no canal do Youtube Curtas Brasileiros.
"Não me fira, pensei com força, tenho dezessete anos, quase dezoito, gosto de desenhar, meu quarto tem um Anjo da Guarda com a moldura quebrada, a janela dá para um jasmineiro, no verão eu fico tonto, meu sargento, me dá assim como um nojo doce, a noite inteira, todas as noites, todo o verão, vezenquando saio nu na janela com uma coisa que não entendo direito acontecendo pelas minhas veias, depois abro As mil e uma noites e tento ler, meu sargento, sois um bom dervixe, habituado a uma vida tranquila, distante dos cuidados do mundo, na manhã seguinte minha mãe diz sempre que tenho olheiras, e bate na porta quando vou ao banheiro e repete repete que aquele disco da Nara Leão é muito chato, que eu devia parar de desenhar tanto, porque já tenho dezessete anos, quase dezoito, e nenhuma vergonha na cara, meu sargento, nenhum amigo, só esta tontura seca de estar começando a viver, um monte de coisas que eu não entendo, todas as manhãs, meu sargento, para todo o sempre, amém." (Pg. 114-115)Aqueles dois foge do erotismo encontrado em Sargento Garcia e assume um tom mais intenso no sentido de uma relação que cresce aos poucos entre dois rapazes que, aprovados no mesmo concurso, acabam trabalhando na mesma firma. O progressivo envolvimento entre os dois o tornam vítimas do preconceito dos outros colegas de trabalho, mas diferente do final fatalista e agressivo de Terça-feira gorda, os dois personagens em Aqueles dois são demitidos e, ao saírem do prédio da firma, deixam para trás uma vingança simbólica em relação aos algozes quando Caio escreve que "quase todos ali dentro tinham a nítida sensação de que seriam infelizes para sempre". Aqueles dois também foi adaptado para o cinema por Sérgio Amon em 1982, mas infelizmente não encontrei o filme disponível em nenhuma plataforma.
"Foi na noite de trinta e um, aberta a champanhe na quitinete de Raul, que Saul ergueu a taça e brindou à nossa amizade que nunca nunca vai terminar. Beberam até quase cair. Na hora de deitar, trocando a roupa no banheiro, muito bêbado, Saul falou que ia dormir nu. Raul olhou para ele e disse você tem um corpo bonito. Você também, disse Saul, e baixou os olhos. Deitaram ambos nus, um na cama atrás do guarda-roupa, outro no sofá. Quase a noite inteira, um conseguia ver a brasa acesa do cigarro do outro, furando o escuro feito um demônio de olhos incendiados. Pela manhã, Saul foi embora sem se despedir para que Raul não percebesse suas fundas olheiras." (Pg. 198)
Aqueles dois fecha a segunda parte do livro, intitulada, Os morangos, mas a releitura de Morangos Mofados me fez prestar atenção em outro conto da segunda parte da obra que até então eu não havia dado tanta importância: Natureza viva. Neste conto, a profunda incomunicabilidade do indivíduo, incomunicabilidade que pode atingir até mesmo os que se julgam esplendidos comunicadores, atinge o narrador, que busca o momento adequado através da construção de um ambiente intimista para se abrir para o amigo sentado ao seu lado na sala de estar. Na história, como em outras histórias da segunda parte da obra, o narrador também decide por desinvisibilizar os seus sentimentos ao escolher começar a falar, embora todo o conto gire em torno das expectativas e desejos que o narrador mantém em segredo dentro de si.
Confrontado com a realidade e as lembranças do passado, o narrador observa a cidade e se pergunta "se alguém realmente finalmente apertou o botão?" O botão nesse caso ainda seria a possibilidade de uma bomba atômica, receio constante daquela geração depois do que ficou escrito na história com Hiroshima e Nagasaki. No final das contas, apertar o botão não significava exclusivamente destruição mas também o recomeço depois do extermínio dos sonhos e utopias. O sentimento de recomeço toma conta do narrador, que de joelhos sobre os ladrilhos escuros, observa o sabor de morangos mofados ir embora para dar espaço a possibilidade de novos morangos fecundos, simbolizando novas esperanças.
O diretor de cinema argentino Fernando Birri, quando perguntado em uma conferência qual era a utilidade da utopia, respondeu: "A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar." No final de Morangos Mofados, o narrador, através da simbologia por trás de replantar os morangos na rigidez dos canteiros de cimento, decide caminhar ao invés de permanecer estagnado e escolhe sonhar/plantar ainda mais uma vez depois de os campos de morangos infinitos terem todos mofados.
A releitura de Morangos Mofados através da perspectiva da derrota dos anseios das gerações passadas me trouxe reflexões sobre o momento que experienciamos agora. Nossa geração e nossas utopias - de um mundo igualitário, sem preconceitos e justo - também correm risco quando ao redor de nós forças nacionalistas, protecionistas e xenófobas como Trump nos EUA, Le Penn na França, May no Reino Unido e Geert Wilders na Holanda se transformam em um espectro de momentos assustadores da história da humanidade.
Nós descobrimos que sonhar com um mundo que dava um passo para frente e nunca dois passos para trás era possível, mas as vozes que antes se escondiam por acreditarem que seus próprios pensamentos eram retrógrados, agora sentem orgulho em vocalizar seus preconceitos e discursos segregadores. Os discursos que antes eram tidos como inconcebíveis no momento histórico em que estamos inseridos agora funcionam como a urina que os encantadores de cobras utilizam na ponta da flauta para chamar a atenção das víboras. Estaríamos a cada dia nos afastando mais e mais das nossas utopias? Estariam os morangos da nossa geração, ao poucos, se esverdeando de mofo? Esperemos que não, mas o sabor amargo na boca é incontestável.
"Por um momento desejarás então acender a luz, dar uma gargalhada ridícula, acabar de vez com tudo isso, fácil fingir que tudo estaria bem, que nunca houve emoções, que não desejas tocá-lo, que o aceitas assim latejando amigo belo remoto, completamente independente de tua vontade e de todos esses teus informulados sentimentos. No momento seguinte, tão imediato que nascerá, gêmeo tardio, quase ao mesmo tempo que o anterior, desejarás depositar o cálice, apagar o cigarro e estender duas mãos limpas em direção a esse rosto que sequer te olha, absorvido na contemplação de sua própria paisagem interna. Mas indiferente à distância dele, quase violento, de repente queres violar com tua boca ardida de álcool e fumo essa outra boca a teu lado. Desejarás desvendar palmo a palmo esse corpo que há tanto tempo supões, com essa linguagem mesmo de história erótica para moças, até que tua língua tenha rompido todas as barreiras do medo e do nojo, subliterário e impudico continuas, até que tua boca voraz tenha bebido todos os líquidos, tuas narinas sugado todos os cheiros e, alquímico, os tenhas transmutado num só, o teu e o dele, juntos - luz apagada, clichê cinematográfico, peças brancas de roupa cintilando jogadas ao chão." (Pg. 158-159)Finalmente, a última parte da obra, que carrega o mesmo nome do livro, Morangos Mofados - em evidente referência a canção Strawberry Fields Forever dos Beatles -, estrutura-se como uma peça musical, dividindo-se em preludio, allegro agitato, adagio sostenuto, andante ostinato e minueto e rondó, com a intenção de dar à peça literária a unidade e o movimento de uma pequena obra musical. Na história, um publicitário bem sucedido é acometido por um constante gosto de morangos mofados na boca. No consultório, um medicamento capaz de inibir angústias fúteis e memórias inúteis lhe é receitado pelo médico. O remédio e as lembranças do passado confundidas com o presente lhe provocam náuseas. Ao vomitar, o narrador enxerga pedaços de morangos esverdeados no meio do vômito, mas o gosto dos morangos mofados permanece na sua boca.
Confrontado com a realidade e as lembranças do passado, o narrador observa a cidade e se pergunta "se alguém realmente finalmente apertou o botão?" O botão nesse caso ainda seria a possibilidade de uma bomba atômica, receio constante daquela geração depois do que ficou escrito na história com Hiroshima e Nagasaki. No final das contas, apertar o botão não significava exclusivamente destruição mas também o recomeço depois do extermínio dos sonhos e utopias. O sentimento de recomeço toma conta do narrador, que de joelhos sobre os ladrilhos escuros, observa o sabor de morangos mofados ir embora para dar espaço a possibilidade de novos morangos fecundos, simbolizando novas esperanças.
"Abriu os dedos. Absolutamente calmo, absolutamente claro, absolutamente só enquanto considerava atento, observando os canteiros de cimento: será possível plantar morangos aqui? Ou se não aqui, procurar algum lugar em outro lugar? Frescos morangos vivos vermelhos. Achava que sim. Que sim. Sim." (Pg. 212)Nossas utopias dizem mais respeito ao momento histórico em que estamos inseridos do que a nós mesmos, pois elas representam as lacunas na sociedade em que vivemos e nos motivam a ir atrás desse ideal (ou pelo menos sonhar com o mesmo). Na história da humanidade, todos os povos cultivam utopias: os cristãos e o paraíso, os espíritas e o Nosso Lar, o mito medieval na The Land of Cockaigne, uma terra de abundâncias onde toda a aspereza da vida camponesa medieval não existia, o proletariado inglês e o desejo de uma distribuição igualitária de renda, etc. De uma maneira ou de outra, todos os povos inventaram e inventam um paraíso utópico que os permita prosseguir ou ter anseios.
O diretor de cinema argentino Fernando Birri, quando perguntado em uma conferência qual era a utilidade da utopia, respondeu: "A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar." No final de Morangos Mofados, o narrador, através da simbologia por trás de replantar os morangos na rigidez dos canteiros de cimento, decide caminhar ao invés de permanecer estagnado e escolhe sonhar/plantar ainda mais uma vez depois de os campos de morangos infinitos terem todos mofados.
A releitura de Morangos Mofados através da perspectiva da derrota dos anseios das gerações passadas me trouxe reflexões sobre o momento que experienciamos agora. Nossa geração e nossas utopias - de um mundo igualitário, sem preconceitos e justo - também correm risco quando ao redor de nós forças nacionalistas, protecionistas e xenófobas como Trump nos EUA, Le Penn na França, May no Reino Unido e Geert Wilders na Holanda se transformam em um espectro de momentos assustadores da história da humanidade.
Nós descobrimos que sonhar com um mundo que dava um passo para frente e nunca dois passos para trás era possível, mas as vozes que antes se escondiam por acreditarem que seus próprios pensamentos eram retrógrados, agora sentem orgulho em vocalizar seus preconceitos e discursos segregadores. Os discursos que antes eram tidos como inconcebíveis no momento histórico em que estamos inseridos agora funcionam como a urina que os encantadores de cobras utilizam na ponta da flauta para chamar a atenção das víboras. Estaríamos a cada dia nos afastando mais e mais das nossas utopias? Estariam os morangos da nossa geração, ao poucos, se esverdeando de mofo? Esperemos que não, mas o sabor amargo na boca é incontestável.
Título: Morangos Mofados
Autor: Caio Fernando Abreu
Ano da Edição: 2015
Ano de Publicação: 1982
Páginas: 224
Editora: Nova Fronteira